[Clipping] Grupos da Zona Norte do Recife integram turismo à arte e religião

Fonte: G1/PE

Os homens usam uma caneleira feita com pele de boi e possuem chocalhos nos tornozelos. Ficam ao fundo do palco, comandando os batuques oriundos dos instrumentos de percussão. As mulheres vestem saiotes coloridos e sutiãs feitos com quengas de coco, tudo realçado por pinturas rústicas no rostos, além de colares e pulseiras de miçangas. No espetáculo, música e dança dialogam de forma visceral, crua, dando ao espectador a sensação de estar sendo transportado, por um breve momento, ao país de Camarões, berço da cultura Zulu.

O cenário descreve uma apresentação do Bacnaré, o Balé de Cultura Negra do Recife, criado em 1985 pelo pesquisador e coreógrafo Ubiracy Ferreira. O grupo integra uma extensa lista de manifestações culturais da região chamada de ‘Grande Bomba’, que compreende vários bairros no entorno da Bomba do Hemetério, na Zona Norte do Recife. O Bacnaré, por exemplo, tem sede em Água Fria, a pouco mais de 5 minutos a pé da entrada principal da Bomba.

(Nesta série de reportagens, o G1 mostra o impacto da criatividade e do empreendedorismo no desenvolvimento de uma localidade auto-sustentável. A Bomba do Hemetério foi tomada como personagem por sua diversidade e representatividade cultural no cenário recifense).

“A gente já se apresentou muitas vezes no exterior, ao lado de grupos de Camarões e da África do Sul, e eles perguntam: ‘Como vocês aprenderam a dança da gente?'”, explica Ferreira. O Bacnaré, complementa, utiliza a cultura negra original, toda ela oriunda do candomblé. Essa obsessão, digamos assim, na busca pelas origens da arte que representam, é fruto do trabalho de anos de Ubiracy. “O africanismo no Brasil é muito miscigenado”, diz. Daí porque o fundador do Bacnaré também pesquisou ritmos junto a grupos africanos da França, China e Grécia.

Os ensaios acontecem na casa onde ele vive com a esposa e o filho, Antônia e Tiago Batista, responsáveis por dar sequência ao trabalho do balé. É lá onde eles desenvolvem a auto-sustentabilidade do Bacnaré: o figurino, os instrumentos, o depósito dos materiais, aboslutamente tudo é produzido na residência do fundador. Os integrantes também elaboram peças para venda, como cangas, alguns chocalhos e camisas com a logomarca do Bacnaré.

Além disso, eles ainda organizam apresentações para turistas, quando o terraço da casa vira um verdadeiro teatro. Quem paga o ingresso usufrui da parte artística, claro, e degusta três tipos de pratos preparados especialmente para dar maior integração à atmosfera da cultura Zulu. Entre eles, mingau de cará e um feito à base de mariscos, em homenagem à Iemanjá. Ao todo, o Bacnaré possui 38 integrantes, que precisam seguir um rigoroso manual de disciplina. “Todo mundo tem aula de cultura afro, aula de etiqueta também, pois a gente viaja muito e acaba jantando com governadores, políticos, e não queremos passar uma impressão errada”, afirma Antônia, que também é coreógrafa.

A dança Zulu representa a transição humana rumo à maturidade, de menina para moça e de menino para rapaz. A mulher que levanta a perna mais alto demonstra fertilidade. O homem que faz o mesmo expõe virilidade e força. Uma espécie de autoafirmação, assim como acontece com a própria história do Bacnaré. O fundador Ubiracy Ferreira, por exemplo, foi o primeiro bailarino negro a se apresentar no Teatro Santa Isabel. E o trabalho do balé segue a mesma linha de romper obstáculos. “Já tirei menino das drogas, já botei a dança e a música como profissão para muitos. Tenho uns dez ex-integrantes do balé aí espalhados pelo mundo, trabalhando, na Alemanha principalmente. Nós somos uma espécie de poder público”, orgulha-se Antônia.

Quem também tem uma ligação forte com a comunidade e, de certa forma, com a cultura negra, é Marivalda Maria dos Santos, que preside o Maracatu Estrela Brilhante desde 1993. A responsabilidade de estar à frente do grupo centenário é tanta que ela disponibilizou a própria casa para ser a sede. Construiu um espaço nos fundos onde desenha, costura e armazena todo o figurino do centenário maracatu, fundado em 1906 por Cosme Damião Tavares.

Originalmente, o Estrela Brilhante foi fundado no bairro de Campo Grande. Depois, mudou-se para o Alto do Pascoal. Somente com a chegada de Marivalda à presidência é que a agremiação, do tipo baque virado, chegou ao Alto José do Pinho, na “Grande Bomba”. Marivalda, aliás, além de chefe, costureira e dona da sede, também é rainha do grupo. Posição em que, ressalte-se, ela já tem certa experiência: também foi rainha do Maracatu Leão Coroado.

Ainda trabalhou como costureira e baiana na escola Gigantes do Samba, quase uma instituição cultural da Bomba do Hemetério. Hoje, no entanto, garante estar ligada de corpo e alma ao Estrela Brilhante, embora nem precise mostrar qualquer prova para dar certeza disso. “É uma garra danada, principalmente porque o Maracatu não tem sede até hoje. Já me movimentei de todas as formas, com todo mundo, e nada”, lamenta-se Marivalda.

Na pequena sala de jantar de casa, ela exibe com orgulho os vários trofeus que conquistou com a agremiação nos últimos anos, como o de atual campeão do carnaval recifense, por exemplo. O grupo é composto por 100 pessoas na corte e 150 no batuque. O maracatu de baque virado é uma manifestação que resgata elementos da nobreza por meio de encenações, sendo a coroação das rainhas um dos momentos-ápice das apresentações. “Sou costureira desde muito nova, então isso já ajuda muito na confecção das peças do maracatu. Se fosse deixar para fazer tudo por fora, ia sair bem mais caro”, explica Marivalda.

Assim como o Bacnaré, o Estrela Brilhante também já passou por várias partes do globo, incluindo uma turnê extensa pela Europa em 2000, onde estiveram na Alemanha, Itália, França, Bélgica, Suiça, Portugal e Espanha. Recentemente, o grupo mostrou toda a sua desenvoltura durante a visita da presidente Dilma Rousseff ao Porto de Suape, em maio, quando a chefe do Executivo federal participou da cerimônia de entrega do navio-petroleiro Zumbi dos Palmares.

O próprio nome da embarcação lembra a história de superação do Estrela Brilhante, que costuma atuar discretamente na emancipação social de alguns dos membros. “Nós vamos nos apresentar no dia 26 de julho nos Estados Unidos, será a primeira vez do maracatu lá”, diz a presidente. “Tem uns ex-integrantes que estão morando lá, são músicos, foram viver suas vidas por lá e irão nos dar uma força na apresentação”, completa.

O Estrela Brilhante e o Bacnaré são, sim, grupos culturais de uma região periférica do Recife, mas atuam fortemente na consolidação da região da Grande Bomba como um espaço onde a economia popular está fortemente ligada ao turismo. Talvez seja por isso que muitos desses grupos são mais conhecidos por pessoas de fora do que pelos próprios moradores da capital pernambucana.

Religiosidade, gastronomia e turismo de experiência

“Qualquer ritual é uma oferenda. A gente alimenta o divino pra trazê-lo para mais perto”, explica a iabassê e chef Carmem Virgínia, do terreiro Ilê Axé Ogbon Obá, localizado no Córrego do Deodato, em um ponto mais alto da região permeada por morros na Zona Norte do Recife. Iabassê é o nome dado ao responsável pelo preparo dos alimentos sagrados no candomblé.

Ao lado de Everaldo Alves – o babalorixá Everaldo de Xangô – Carmem tenta fazer do espaço não só um ponto utilizado para celebrações, mas também um local aberto para o público externo, turistas principalmente, desmistificar os ainda obscuros rituais do candomblé. Uma vez por mês, eles organizam festas voltadas para explicar o funcionamento do terreiro. Os eventos, claro, também funcionam como uma boa forma de capitalização para as atividades feitas no local, onde é desenvolvido um trabalho social com jovens da comunidade há 20 anos.

No Ogbom Obá, como é mais conhecido, são oferecidos cursos de percussão, gastronomia, capoeira e coco, por exemplo. O espaço proporciona uma mini-imersão, por assim dizer, na cultura afro. É o chamado turismo de experiência, que vai além da contemplação visual. Nos eventos turísticos promovidos pelo terreiro, o sagrado e o divino passeiam de mãos dadas. Os batuques do afoxé que leva o mesmo nome do terreiro são ouvidos ainda da rua e, no ar, se misturam ao forte cheiro das iguarias produzidas por Carmem.

“Eu conto um pouco da história do terreiro, das nossas atividades, e da relação que temos com o divino. Fazer o bem aqui é o que nos deixa mais próximo deles”, resume o pai Everaldo. No terreiro, cultuam-se 16 orixás, os santos do candomblé. Nas festas abertas, a iabassê produz pratos que são oferecidos a pelo menos 13 deles. Nos eventos, ela explica a relação de cada um com as entidades mitológicas. Xangô, o orixá do fogo, também o guardião da chef Carmem Virgínia, recebe uma oferenda de beguiri. O prato é preparado, entre outros ingredientes, com caruru, ragu de rabada, camarão seco e dendê. “Esse eu tenho que caprichar mais quando faço, já que é para o meu orixá, né?”, brinca a iabassê, que é formada em gastronomia.
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Ascom/IADH

Assessoria de Comunicação do IADH - Instituto de Assessoria para o Desenvolvimento Humano, uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) que tem como missão “Desenvolver capacidades de pessoas e organizações em estratégias e processos de desenvolvimento local sustentável".

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