Fonte: G1/PE
Em geral, toda comunidade localizada em regiões periféricas possui vários aspectos em comum. Pode ser uma famosa barraca de cachorro-quente, uma rádio comunitária, um salão de beleza mais procurado ou aquele morador que todos conhecem. Na Bomba do Hemetério, na Zona Norte do Recife, a situação se repete. O que difere a região de outras localidades do tipo, no entanto, é o forte espírito empreendedor presente nos moradores. Um passeio rápido pela ‘Bomba’, como o bairro é popularmente conhecido, mostra uma economia local variada, amparada, sobretudo, no setor de comércio e serviços. Conversando com os empreendedores da área, uma curiosidade desperta logo de cara: todos são uníssonos em falar que o trabalho gira em torno da necessidade do cliente.
(Nesta série de reportagens, o G1 mostra o impacto da criatividade e do empreendedorismo no desenvolvimento de uma localidade auto-sustentável. A Bomba do Hemetério foi tomada como personagem por sua diversidade e representatividade cultural no cenário recifense).
A Bomba do Hemetério faz parte da Região Político-administrativa 2 do Recife e se espalha por uma área de 43 hectares. De acordo com o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são 8,4 mil habitantes em 2,3 mil domicílios, o que gera uma média de 3,6 moradores em cada imóvel. Pouco mais da metade deles (55,6%) é administrado por mulheres.
Maria da Conceição Carneiro pode se encaixar nesse perfil. Ela comanda um dos exemplos mais emblemáticos do empreendedorismo coletivo que é característico do bairro: o Espetinho da Ceça, localizado na Rua Chã de Alegria, uma das principais da comunidade. A gênese dessa história remete ao ano de 2003, quando Ceça deixou seu antigo emprego como balconista em uma doceria e resolveu começar um negócio próprio. De início, vendia alimentos em frente à casa da mãe. “Mas não estava tendo muito retorno, o pessoal pegava muito ‘fiado’ e nunca pagava”, lembra.
“Tinha cliente que passava lá depois de largar do trabalho, aí logo começou a chegar o pessoal pedindo uma cervejinha. No inverno, como chovia, tive que ampliar o espaço para a garagem, já que ninguém queria se molhar”, explica Ceça, atribuindo as primeiras ampliações às necessidades do cliente. Não demorou muito e a empresária comprou um freezer para armazenar as bebidas. “Comprei no ‘pendura’, ele estava quebrado e depois consertei”, recorda, aos risos.
A partir daí, as reformas no espaço não pararam mais. Primeiro, as mulheres pediram um banheiro e logo foram atendidas. Com cinco anos de funcionamento, surge uma grande intervenção: construiu uma pequena cozinha, imprimiu cardápios, trocou todo o piso do local e comprou mais mesas. O marido Samuel Manoel, que trabalhava havia 20 anos como gerente de uma empresa do setor têxtil, sempre dava uma ajuda ao largar do expediente, mas Ceça, além de proprietária, era uma espécie de funcionária multifuncional. “Eu cozinhava, era garçonete e ficava no caixa para receber os pagamentos”, afirma.
Não demorou muito para Samuel, ao ver que o espetinho poderia ser muito mais rentável, largar o emprego. “Eu investia meu salário, as sobras, as férias, tudo”, orgulha-se. Já com o casal tomando a dianteira dos negócios, houve uma segunda reforma, após oito anos de funcionamento. Nela, aquele humilde espetinho localizado no centro da Bomba do Hemetério acabou se transformando num espaço que nada deixa a desejar aos estabelecimentos localizados em regiões mais nobres da capital pernambucana.
Samuel lembra que um dos pontos-chave da reforma foi a colocação de uma escada para melhorar o acesso ao pavimento superior do bar. “Deu umas cinco da tarde e o sujeito que estava fazendo a obra foi embora. Todo mundo aqui da comunidade se juntou, pegou britadeira, ferramenta, e nós mesmos concluímos o serviço”, recorda. Hoje, o Espetinho da Ceça tem máquina de passar cartão, TV a cabo, blu-ray e internet sem fio. Até uma logomarca foi criada.
E o mais importante: Samuel e Ceça decidiram constituir um CNPJ. “A gente viu que tinha necessidade de se regularizar, recolher impostos, fazer tudo direitinho. Antes, tudo que a gente tinha era lucro, mas agora nós ficamos mais tranquilos porque sabemos que estamos trabalhando da forma correta”, explica Samuel. Atualmente, o casal empreendedor ainda precisa se desdobrar com o projeto itinerante do Espetinho da Ceça, que leva os conhecidos petiscos do local para festas e eventos externos. É mais uma ideia que rende recursos importantes para os projetos futuros do estabelecimento. “Queremos trocar as janelas, para circular mais um ventinho para o pessoal que fica no primeiro andar, além de ajeitar o banheiro das mulheres. E Samuel já está pesquisando preços de uns painéis de energia solar”, planeja a visionária Ceça.
‘Sem filé, cachorro come osso’
Com um pouco menos experiência, mas com o mesmo vigor do famoso espetinho do bairro, a rádio comunitária Seu Hemetério é mais um caso nítido do forte poder de mobilização da Bomba. No ar desde o final de 2011, a emissora funciona no esquema ‘rádio poste’, com 11 alto-falantes espalhados pelo bairro divulgando a programação. “O morador não tem muita opção, ou escuta, ou escuta”, brinca a produtora Jocely Nunes, que é professora de formação.
Todos os integrantes da emissora foram capacitados por um núcleo de comunicação do projeto Bombando Cidadania, uma iniciativa de desenvolvimento local que reúne sociedade civil e os poderes público e privado. A ideia inicial era montar um jornal impresso, porém o dinamismo do rádio acabou sendo o escolhido para colocar em prática as várias pautas sugeridas pela comunidade.
São nove programas elaborados em parceria entre os moradores e os 14 funcionários da Seu Hemetério, sendo que um deles é voltado para as crianças e os jovens do bairro: “Universo Infantil, curtindo a infância tintim por tintim”. Quem comanda os microfones é Emanuelle Borba, mais conhecida por Manuka, de 13 anos. A locutora lê contos, dá dicas de atividades culturais e fala com propriedade do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Tudo ao vivo.
“Eu queria ser modelo, atriz, veterinária, e já fiz vários comerciais. Câmera é comigo mesmo”, brinca a jovem. O talento de Manuka para a comunicação foi descoberto pela produtora Jocely, que é professora dela em uma escola no bairro. Para garantir a integração plena da população, os moradores participam de oficinas comunitárias ministradas pelos próprios integrantes da Seu Hemetério, responsáveis por repassar os conhecimentos adquiridos por meio de uma formação continuada em técnicas e ferramentas de comunicação.
A rádio vai ao ar às segundas, terças, quintas e sábados, com programas que envolvem temas como violência contra a mulher, direitos da comunidade, assuntos com temática jovem e, claro, muita música. “O público da periferia curte muito escutar brega, mas é também por falta de opção. É como cachorro, que só come osso porque não tem filé. Escolhendo bons conteúdos e agendas, com certeza a comunidade se sente mais próxima da rádio”, pontua Jocely.
Como prova de que a Seu Hemetério está sempre reciclando o conteúdo, uma rádio novela deve ser veiculada em breve. Além disso, os comunicadores já articulam a possibilidade de colocar a programação na internet, o que deve levar a produção local para além das fronteiras da Bomba.
Anuncicleta
Quem não tem interesse em levar seu trabalho para fora da comunidade é o técnico em eletrônica Jáder Moura, 61 anos. Ele é o responsável por divulgar os mais diversos tipos de ações que acontecem na Bomba do Hemetério, através da “anuncicleta”. “A prioridade é rodar por aqui. Vez ou outra que eu faço serviço em alguma comunidade vizinha”, afirma.
À primeira vista, o equipamento de trabalho não passa de uma bicicleta com caixas de som acopladas às partes dianteira e traseira. No entanto, a anuncicleta, além de ser fonte de renda para Jáder, funciona como uma espécie de outdoor ambulante para os empreendedores da região. E foi justamente observando esse nicho que Jáder resolveu deixar um pouco de lado os conhecimentos em eletrônica para investir na comunicação.
“A tecnologia avança e as pessoas acabam abandonando os aparelhos analógicos, e como eu sou muito dinâmico, gosto de me comunicar, acabei me identificando com a propaganda”, diz. “Com a eletrônica, eu trabalhava sozinho, isolado, e agora estou na rua o tempo todo, falando com as pessoas”, completa.
Seu Jáder, como é mais conhecido entre os moradores da Bomba, ainda continua fazendo ‘bicos’ como eletricista para garantir uma renda extra, mas é por meio do trabalho com a anuncicleta que ele busca se aperfeiçoar. Em cinco anos no setor, já se capacitou com cursos de empreendedorismo e informática. O conhecimento adquirido em sala é aplicado à risca na prática.
“Eu cadastro o cliente, faço recibo, discuto os horários em que vou circular, além de facilitar o pagamento em duas vezes. A partir de dez horas de anúncio, eu ofereço um serviço de cortesia onde distribuo panfletos também”, descreve Jáder, sempre mencionando a “necessidade do cliente” entre uma frase e outra. Em geral, ele cobra R$ 15 por hora de anúncio.
“A parte complicada é que eu já tenho uma idade mais avançada, e não é fácil dirigir esse negócio, principalmente nas subidas. O bom é que eu trabalho e me exercito ao mesmo tempo, estou sempre botando as gordurinhas para fora”, comenta, aos risos. Para o futuro, ele já pensa em comprar uma mobilete e fazer um pequeno estúdio em casa, o que evitaria a terceirização do serviço de locução. Para conseguir esses recursos, Jáder pretende recorrer ao crowdfunding, mecanismo que estimula a geração de renda e investimento para micro e pequenos empreendedores, a partir de um cadastro feito na internet.
[iframe src=”http://g1.globo.com/pernambuco/noticia/2013/06/moradores-da-bomba-estimulam-economia-criativa-e-aumentam-renda.html” scrolling=”yes” width=”100%” height=”800″]